por Arthur Saldanha dos Santos, Luiz Eduardo Gomes,
Ester Louback e Natália Ferreira Barbosa
Como a alimentação e a internet estão relacionadas?
As culturas alimentares digitais representam um fenômeno emergente que reflete a convergência entre os meios de comunicação e a cultura alimentar na era digital. Nos últimos anos, o setor alimentício tem vivido uma revolução digital, impulsionada pelos avanços tecnológicos e pela crescente demanda dos consumidores por conveniência, transparência, praticidade e personalização. Esse crescimento exponencial não apenas revoluciona a forma de consumo, mas também estimula uma resposta aos problemas alimentares globais, com demandas por qualidade, saudabilidade e sustentabilidade (Lupton, 2020).
As inovações alimentares são alternativas sustentáveis?

As ferramentas digitais têm sido fundamentais para otimizar as diversas etapas da cadeia alimentar, como por exemplo, a agricultura de precisão na etapa de produção, o e-commerce de alimentos na comercialização, os aplicativos de planejamento de refeições no consumo e as composteiras domésticas no descarte.
Desta forma, essas ferramentas estabelecem processos de adequação produtiva com vistas ao cumprimento dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS), particularmente, a (2) Fome Zero e Agricultura Sustentável; (3) Consumo e Produção Responsáveis; (9) Indústria, Inovação e Infraestrutura; (12) Parcerias e Meios de Implementação; e (17) Saúde e Bem-Estar.
Entre as inovações mais recentes no mercado alimentício, destacam-se os produtos de origem vegetal como hambúrgueres à base de planta, os alimentos obtidos a partir de insetos como a farinha de grilo, que pode ser utilizada em várias receitas, como barras de proteína, bolos e até massas, oferecendo uma fonte rica em proteínas e nutrientes. Além disso, as inovações também englobam alimentos funcionais como iogurte probiótico, as tecnologias de impressão 3D para a criação de alimentos em formas e texturas personalizadas, como chocolates ou pratos gourmet, e a carne cultivada em laboratório, produzida a partir de células animais sem a necessidade de criação e abate de animais, oferecendo uma alternativa sustentável e ética à carne convencional (Mishyna; Chen; Benjamin, 2020; Singh et al., 2021). Essas inovações visam combinar tendências alimentares com novas tecnologias emergentes, provocando debates contraditórios entre os diversos atores do cotidiano alimentar.

Mas afinal, como essas ações se relacionam às mudanças climáticas?
Com a proliferação de dispositivos conectados à internet, a expansão das redes sociais, a maneira como as pessoas consomem, compartilham alimentos e interagem com informações sobre alimentação têm tido impactos significativos nas dinâmicas sociais, configurando-se em importante ferramenta no acompanhamento das discussões sobre a questão alimentar e mudanças climáticas. Com isso, as interconexões entre alimentação, internet e mudanças climáticas são cada vez mais evidentes e importantes nos estudos dessas temáticas na atualidade. Essas três áreas se influenciam mutuamente, destacando tópicos como:
- impactos ambientais das práticas alimentares
- o papel da internet na disseminação de informações e comportamentos de consumo
- consequências das mudanças climáticas na segurança alimentar global.

Agricultura, pasto e desmatamento
A produção e o consumo de alimentos são grandes contribuintes para as mudanças climáticas. A agricultura é responsável por cerca de 24% das emissões globais de gases de efeito estufa, com a pecuária representando uma parcela significativa devido ao metano liberado pela fermentação entérica (processo digestivo de animais ruminantes) e à degradação de pastagens (FAO, 2016). No Brasil, a agricultura respondeu por 25% das emissões brutas de gases de efeito estufa do país em 2021.
Além disso, o desmatamento para criação de terras agrícolas e pastoris agrava ainda mais esse cenário, liberando dióxido de carbono armazenado no solo e, consequentemente, elevando a pegada de carbono (Abramovay, 2021). A alta do desmatamento no Brasil, sobretudo na Amazônia, foi a principal responsável pelo aumento de emissões em 2021. A destruição dos biomas brasileiros emitiu 1,19 bilhão de toneladas brutas de CO2, isto equivale ao que 40 milhões de veículos leves emitirão de CO2 durante toda sua vida útil (Potenza et al., 2023).
Pegada de Carbono é o indicador ambiental que mede as emissões diretas e indiretas de compostos que contribuem para o efeito estufa e, portanto, para o aquecimento global. |

As práticas agrícolas intensivas também causam a degradação do solo, redução da biodiversidade e poluição das águas (IPCC, 2019). A área ocupada pela agropecuária no Brasil cresceu 50% no intervalo de 38 anos entre 1985 e 2022, avançando sobre 95,1 milhões de hectares (equivalente a mais de 133 milhões estádios de futebol) – extensão superior ao terceiro maior estado brasileiro, Mato Grosso. Quase dois terços (64%) da expansão da agropecuária no país resulta do desmatamento para pastagem. (PROJETO MAPBIOMAS, 2023). Portanto, os sistemas alimentares não são apenas vítimas das mudanças climáticas, mas também perpetradores, criando um ciclo vicioso que intensifica os problemas ambientais globais.

Produção em larga escala, monocultivo e consumo excessivo: é de bom tom?
Não é de bom tom. Segundo a FAO (2016), o padrão de consumo atual, caracterizado em grande parte pela monocultura e, portanto, pelos altos níveis de uso de recursos, baixa qualidade nutricional e geração de resíduos, tem um impacto significativo tanto na saúde humana quanto nas mudanças climáticas. O consumo insustentável de recursos naturais intensifica essas mudanças, criando um ciclo vicioso que exacerba os problemas ambientais, como o aumento contínuo da poluição do ar, e de saúde pública, como o crescimento de doenças relacionadas ao calor, dentre outros.

Mudanças climáticas e a (in)segurança alimentar
O aumento das temperaturas, alterações na quantidade e frequência das chuvas e maior ocorrência de eventos climáticos extremos, como secas e inundações, prejudicam diretamente a produção agrícola e, portanto, a segurança alimentar global. De acordo com a Agência de Proteção Ambiental dos Estados Unidos (EPA), Estimativas mostram que a medida que a temperatura dos oceanos aumenta, cresce o grau de insegurança alimentar grave ou moderada na população mundial:
A cada unidade relativa de calor retida pelos oceanos no mundo, aproximadamente 132 milhões de pessoas entram em insegurança alimentar moderada ou grave. Isso equivale a metade da população brasileira. INSEGURANÇA ALIMENTAR = (132 milhões) x CALOR |
Culturas essenciais, como arroz, milho, soja e trigo, são especialmente suscetíveis, o que pode levar a aumentos nos preços dos alimentos e insegurança alimentar em regiões já vulneráveis. No Brasil, este fator é ainda mais acentuado, uma vez que estas culturas fornecem os principais produtos agrícolas do país, representando 76,9% da estimativa da produção, segundo o levantamento de produção agrícola do IBGE da safra no ano de 2023.
Desde o sertão ao litoral
Adicionalmente, a elevação do nível do mar ameaça terras agrícolas costeiras, enquanto a acidificação dos oceanos impacta negativamente a pesca e a aquicultura, essenciais para a dieta de bilhões de pessoas. A combinação desses fatores resulta em uma complexa rede de impactos que desafia a capacidade das comunidades globais de se adaptarem e garantirem a segurança alimentar de suas populações.

Acidificação oceânica se refere ao aumento da acidez do oceano por longos períodos devido a dissolução do Gás Carbônico na atmosfera. Os oceanos contribuem para a absorção do Gás Carbônico, porém a emissão excessiva deste gás faz com que a acidez do oceano se intensifique. Isto ocasiona o efeito corrosivo nos animais que produzem conchas ou outras estruturas calcárias, como é o caso dos corais. Sendo assim, a acidificação oceânica impacta diretamente na redução da biodiversidade marinha. |

A internet é espaço de informação e novos comportamentos sociais
Diante desses cenários, a internet tem um papel crucial na formação de comportamentos alimentares contemporâneos. Redes sociais e plataformas de compartilhamento de conteúdo disseminam rapidamente tendências alimentares, influenciando as escolhas dos consumidores. Este fenômeno pode ter efeitos positivos, como a promoção de dietas baseadas em plantas que são mais sustentáveis em termos de emissões de gases de efeito estufa na atmosfera, formação e ampliação de redes e movimentos de promoção da sustentabilidade alimentar (Santos, 2022). No entanto, também pode propagar modismos alimentares de alto impacto ambiental ou práticas de consumo excessivo e desperdício alimentar (Smith, 2013).
Praticidade na palma da sua mão
A capacidade da internet de conectar produtores diretamente com consumidores através de plataformas de e-commerce tem potencial para reduzir desperdícios e melhorar a eficiência das cadeias de suprimentos (Niederle; Schneider; Cassol, 2021). No entanto, o impacto ambiental das entregas frequentes e a embalagem excessiva representam novos desafios ambientais que precisam ser abordados. No Brasil, anualmente, cerca de 15,6 kg de resíduos plásticos por pessoa não são reciclados, incinerados ou mantidos em aterros sanitários lacrados. Assim, em média, cada brasileiro produzirá em vida, aproximadamente, 1,2 toneladas de resíduos plásticos que serão mal administrados, ou seja, possivelmente serão queimados em fossas abertas, despejados em rios ou águas abertas ou descartados em aterros sanitários e lixões inadequados (MEIJER et al., 2021).

Mas a que preço?
Segundo o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA), domicílios de todos os continentes desperdiçaram mais de 1 bilhão de refeições por dia em 2022. No Brasil, considerando somente o consumo familiar, a estimativa é de 94 kg per capita ao ano. Segundo o Banco Mundial, o custo da perda e do desperdício de alimentos na economia global é estimado em cerca de R$5,5 trilhão.

Portanto, a relação entre alimentação, internet e mudanças climáticas revela uma complexa rede de influências mútuas. As mudanças climáticas afetam diretamente a saúde humana, enquanto os padrões de consumo insustentáveis intensificam essas mudanças. Atrelado a esse cenário, a internet tem mudado os comportamentos alimentares que podem tanto mitigar quanto exacerbar esses impactos.
A saída é pela abordagem integrada
É urgente que, neste contexto de inovação e avanço tecnológico, sejam criadas abordagens integradas e sustentáveis para enfrentar esses desafios. Promover a sustentabilidade alimentar, utilizar a internet para construir e disseminar práticas alimentares conscientes e adotar políticas eficazes contra as mudanças climáticas são passos cruciais para assegurar um futuro resiliente e sustentável. Além disso, abordagens integradas e multidisciplinares são essenciais para mitigar os impactos negativos e promover um futuro sustentável. Igualmente, políticas públicas eficazes, educação, inovação tecnológica e um sistema de saúde robusto são fundamentais para enfrentar os desafios impostos por essa tríade interconectada. Essas relações e principais discussões farão parte das próximas edições do Informativo Culturas Alimentares Digitais. Confira!

Referências
ABRAMOVAY, Ricardo. Desafios para o sistema alimentar global. Ciência e Cultura, v. 73, p. 53-57, 2021.
Food and Agriculture Organization of the United Nations (FAO). “Greenhouse Gas Emissions from Agriculture, Forestry and Other Land Use.” FAO, 2016.
Smith, P., et al. “How Much Land-Based Greenhouse Gas Mitigation Can Be Achieved without Compromising Food Security and Environmental Goals?” Global Change Biology, 2013.
Faccio, M., Gamberi, M., & Bortolini, M. “Internet of Things for Sustainable Supply Chain Management: A Systematic Literature Review.” Journal of Cleaner Production, 2017.
Intergovernmental Panel on Climate Change (IPCC). “Climate Change and Land: An IPCC Special Report on Climate Change, Desertification, Land Degradation, Sustainable Land Management, Food Security, and Greenhouse Gas Fluxes in Terrestrial Ecosystems.” IPCC, 2019.
MEIJER, Lourens JJ et al. More than 1000 rivers account for 80% of global riverine plastic emissions into the ocean. Science Advances, v. 7, n. 18, p. eaaz5803, 2021.
MISHYNA, Maryia; CHEN, Jianshe; BENJAMIN, Ofir. Sensory attributes of edible insects and insect-based foods – Future outlooks for enhancing consumer appeal. Trends in Food Science & Technology, v. 95, p. 141-148, 2020.
NIEDERLE, Paulo; SCHNEIDER, Sérgio; CASSOL, Abel. (Orgs.). Mercados Alimentares Digitais: inclusão produtiva, cooperativismo e políticas públicas. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2021, p. 15-22.
POTENZA, R. F. et al. Análise das emissões brasileiras de e suas implicações para as metas climáticas do Brasil 1970-2021 gases de efeito estufa. Brasília, DF: SEEG, 2023.
PROJETO MAPBIOMAS – Mapeamento anual de cobertura e uso da terra no Brasil entre 1985 a 2022 – Coleção 8 (2023)
SANTOS, Arthur Saldanha dos. Ativismos digitais do Movimento Afro Vegano: uma análise das narrativas performáticas nas mídias sociais. Tese (Doutorado) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Programa de Pós-Graduação em Sociologia, Porto Alegre, BR-RS, 2022.
SINGH, Meenakshi; TRIVEDI, Nitin; ENAMALA, Manoj K.; KUPPAM, Chandrasekhar; PARIKH, Punita; NIKOLOVA, Maria P.; CHAVALI, Murthy. Plant-based meat analogue (PBMA) as a sustainable food: a concise review. European Food Research and Technology, v. 247, p. 2499–2526, 2021.